CENÁRIO SELVAGEM, ILHA DO GUAÍBA LOCALIZADA A POUCO MAIS DE 40 QUILÔMETROS DA CAPITAL ABRIGA PESCADORES, TURISTAS DE FIM DE SEMANA, LENDAS SOBRE PIRATAS E HISTÓRIAS DE ESCRAVOS Ao ver o Guaíba se ampliar após a passagem do farol a sua esquerda e desembocar na Lagoa dos Patos, com um vento que faz a água se crispar e o barco balançar levemente, você navega mais uma hora e 15 minutos e chega até ela. A imagem que vai se aproximando é semelhante à que veriam desbravadores de séculos atrás ou, na ficção, tripulantes do bando de Jack Sparrow, o protagonista dos filmes Piratas do Caribe. Trata-se de uma ilha com vegetação nativa e variada, dunas claras e mistério próprio do que se poderia chamar de ilha fantasma. No caso de Sparrow, não fosse ele próprio uma ficção, daria para imaginá-lo, com seu gingado e uma taça de rum na mão direita, pisando a areia fofa, quebrando as incontáveis conchas coloridas sob a água límpida e, com olhar desconfiado, observando os 3,3 quilômetros por 550 metros que levam o nome de um dos seus principais inimigos: a Ilha do Barba Negra. Pertencente ao município de Barra do Ribeiro, a ilha fica na saída do Guaíba rumo ao mar. Só não é deserta porque há velejadores que põem suas embarcações a singrar em busca da praia perfeita para passar o dia com a família. Também há pescadores que vão atrás de tainhas, jundiás e piavas. Contrariados, só evitam o bagre, peixe existente em abundância, mas cuja pesca está proibida por decreto estadual homologado em setembro de 2014. A presença humana pode ser notada pelas pontuais garrafas, latas de cerveja, baldes e até um triciclo infantil que trazem o lado perverso da civilização e maculam o cenário paradisíaco. Os conhecedores do local asseguram que esses objetos chegam pela correnteza, em especial quando há cheias. Nas bordas, a água é límpida, e a areia, clara. No interior da ilha, quanto mais você avança ao seu centro, improváveis cactos podem ser vistos entre margaridas, orquídeas, bromélias e lírios, além das samambaias que se espraiam com elegância e árvores frutíferas tomadas de ananás, araçás, goiabas, limões e amoras. Deve-se cuidar com os espinhos afiados. E também com lagartos, capivaras e ratões. Olhando o céu, você pode ver trinca-ferros, sabiás, cardeais, asas-de-telha, barreiros e cravinas voejando. No chão, a areia acusa, intactas, pegadas de pássaros e também daquilo que parece cachorro, mas que pode também ser capivara. Um odor de putrefação é conduzido pelo vento em algumas partes da sua borda. É de mexilhões que se espalham pela areia e que, conforme os frequentadores eventuais, aportam ali a partir dos cascos de navios onde ficam grudados, algo que não ocorria 10 ou 15 anos atrás. LUIZ CARLOS E SUA MULHER, ZELINA: QUEIXAS SOBRE A LEGISLAÇÃO PESQUEIRA E CRÍTICAS AOS CAÇADORES E VERANISTAS A reportagem de Zero Hora observa todos os detalhes daquilo que parece o paraíso tropical localizado bem no começo de uma das maiores lagoas do mundo. De repente, um movimento. – Quem está aqui? – pergunta um homem de estatura média, pele curtida do sol, empunhando um facão. Brinco com ele: – Opa, estou diante do prefeito da ilha? Aos risos, o homem troca a expressão desconfiada pela acolhedora. É o pescador Luiz Carlos Marcelino de Deus, 70 anos. Ele põe o facão na bainha e aponta para o interior da ilha, contando que vive em Guaíba, mas pega seu barquinho e vai até lá pescar antes da Semana Santa. Acompanhamos o pescador pelo interior da ilha. A vegetação se torna mais densa. Espinhos arranham a pele. O barulho dos pássaros intensifica o sentimento de envolvimento com a natureza. – Veja. Aqui está a nossa cabaninha e o trapiche de onde jogo a rede – mostra Luiz Carlos. É uma construção de madeira engenhosa para as condições. – Bom dia. Por favor, sente-se – diz sua mulher, Maria Zelina de Deus, 64 anos. Zelina abandona as palavras cruzadas, acende um cigarro emendado no outro e pergunta se o repórter é amigo do Cléo Kuhn, o homem do tempo da RBS. A partir da resposta positiva, ela pede: – Diz pra ele que precisamos ouvir mais previsões sobre o vento. Na lide pesqueira, ela pega junto com Luiz Carlos. Só não vai quando ele tem parceria masculina. Os dois se mostram muito unidos na paz da ilha em que eles são presença avulsa. Ao lado das cadeiras, há um cacho de bananinhas-do-mato e macelas. Das bananinhas, eles fazem xarope e licor, ao mergulhá-la na cachaça. Das macelas, fazem chá. Moscas voam em volta. O casal dorme bem? – Olha ali a nossa cama – mostra Luiz Carlos, apontando para um improviso cercado de mosquiteiro. – Ficamos na paz aqui, mas claro que nosso objetivo é pescar. Agora, estamos há uma semana. Vamos embora amanhã – reforça Zelina, pedindo que a reportagem não se assuste caso algum lagarto grande, coisa de mais de metro, atravesse por entre as pernas de todos, sem dar atenção (ainda bem que isso não ocorreu…). A rotina é de pesca e poucas distrações. Ela joga palavras cruzadas e ouve rádio. Está sempre informada das notícias. Ambos acompanham o Grêmio avidamente. Zelina ocupa a mente pensando na palavra certa para escrever nos espaços das cruzadas ou lê antigas revistinhas de romances, como Sabrina, Júlia e Bianca. Luiz Carlos, enquanto isso, sai em passeio pela ilha, encontrando eventualmente estranhos como nós. O casal se mostra apaixonado pela ilha do Barba Negra. Lamentam que a filha de 43 anos e a neta de 13 não estão com eles. – Imagina se a menina vai deixar o celular e os jogos eletrônicos – diz ela. Celular? Boa questão. Sim. Pega. Só que a pessoa precisa subir em uma árvore para captar o sinal da Lomba do Pinheiro. Zelina se queixa da poluição deixada pelos turistas eventuais e também dos objetos que chegam em dias de cheia. Olha para o lado e mostra uma parte queimada,